A "Cleópatra negra" da Netflix, a cultura woke e o desprezo pela verdade.
Nem a reação dos egípcios comoveu a elite progressista sobre os problemas com o autodeclarado documentário woke.
Rio de Janeiro, 30 de abril de 2023 - Edição 023 - Nulla dies sine linea - Atualizado 11h30min
O que você diria se a Netflix lançasse um documentário sobre a vida de Pelé com o chileno Pedro Pascal no papel principal? Você aceitaria o argumento de que a escolha se justificaria porque Pedro é “latino” como Edson Arantes do Nascimento?
Para os egípcios e especialistas em história antiga, confundir Pelé com Pedro Pascal é tão absurdo quanto trocar o que se sabe das feições da mais famosa rainha egípcia pela atriz inglesa Adele James na série “Rainhas Africanas”. A ideia dos produtores é, mesmo sendo um erro factual crasso, acenar para o público da elite costeira americana que é obcecada com questões de raça. A série é da lavra de Jada Smith, a esposa de Will Smith que gerou o tapa em Chris Rock na festa do Oscar.
Cleópatra VII era descendente direta do general macedônio Ptolomeu I, amigo e braço direito de Alexandre, o Grande. Quando o mais conhecido conquistador da antiguidade morreu, ainda jovem e sem deixar herdeiros naturais, uma guerra de sucessão se seguiu e seus generais dividiram o vasto reino deixado por ele, cabendo a Ptolomeu à região que hoje engloba o Egito.
A corte macedônia de Ptolomeu, que ficava em Alexandria, não se misturava com a população local e a maioria sequer se dava ao trabalho de aprender a língua egípcia. Era comum que a dinastia ptolomaica mantivesse a linhagem casando irmãos entre si, como aconteceu com a própria Cleópatra que chegou a casar com o irmão, Ptolomeu XIII, quando ele tinha dez anos e ela, dezessete. Eles acabaram guerreando entre si, Ptolomeu XIII foi morto e ela reinou sozinha até se casar com Julio César e depois, Marco Antônio, os dois homens mais poderoso do Império Romano.
Quase nada se sabe sobre a mãe de Cleópatra VII, um subterfúgio usado para justificar a escolha de Adele James para o papel, mas tudo que se conhece da dinastia ptolomaica é que não havia espaço para que um casamento real fosse realizado entre um monarca e alguém fora da linhagem macedônia. Uma exceção seria algo suficientemente incomum para ser notado, mas nunca se encontrou qualquer evidência histórica disso.
Todas as evidências apontam para Cleópatra ter sido branca.
Selecionei abaixo o trailer do documentário, com Adele James no papel principal, e a recriação da feição de Cleópatra feita pelo Royalty Now Studios, especializado em reconstruções em tecnologia digital dos rostos de figuras históricas e recriações artísticas de como essas celebridades antigas se pareceriam hoje em dia. A imagem é baseada em esculturas, gravuras, pinturas e textos históricos aceitos pela comunidade acadêmica como confiáveis.
Por que isso importa?
O caso chamou atenção pelo desprezo pela verdade num documentário de alto orçamento e campanhas pesadas de marketing, o que já é um problema em si, mas também pela reação enérgica dos egípcios e egiptólogos, o que foi totalmente desprezado, quando não chamado de “racista”, pela comunidade woke e pela elite ocidental. Neste caso, o “lugar de fala” não importa, o que vale mesmo é a agenda política dos ricos americanos.
A recriação histórica, a censura de textos clássicos e até a derrubada de estátuas é uma tendência preocupante da cultura atual, que troca a verdade por sentimentos alienados e despreza a experiência que mostra que nada construído com base em mentiras tem bons resultados, mesmo para os supostos beneficiários.
Não houve ninguém que tenha reclamado de Denzel Washington como Macbeth na produção de Joel Cohen para a Apple+ porque, além de ser um ator de primeira, é uma obra ficcional e, claro, em ficção vale tudo. Quando Akira Kurosawa recriou Rei Lear em RAN, usando atores japoneses e adaptando a história à cultura do seu país, realizou um dos mais belos filmes de todos os tempos e com todo respeito à obra original de Shakespeare. De novo, ninguém reclamou.
O verdadeiro racismo, é possível argumentar, está numa elite que, querendo sinalizar virtude, parece desconhecer figuras de origem étnica africana que mereçam homenagens, apelando para uma rainha egípcia de origem grega. Um pouco mais de estudo de história, respeito aos fatos e à ciência ajudariam a construir um futuro melhor para todos, sem polêmicas desnecessárias e planejadas para faturar em cima da histeria das redes sociais.
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Alexandre Borges
Analista Político @ Jovem Pan News
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